Eu não nasci digital.
Minha primeira conexão com o mundo foi no quintal de casa, entre a terra vermelha, o cheiro do feijão cozinhando e os olhos da minha avó me dizendo tudo sem dizer nada.
A primeira “nuvem” que eu vi, não salvava arquivos, ela anunciava chuva.
E a primeira rede que me prendeu não tinha Wi-Fi. Era a expectativa dos outros sobre quem eu devia ser.
Mas o tempo passou. E com ele, tudo passou a caber dentro de uma tela.
Amores, compras, trabalhos, vícios, sonhos, tragédias. Tudo virou dado. Tudo virou produto.
E nós, por distração ou desejo, viramos usuários.
A digitalização não foi uma escolha individual. Foi uma travessia coletiva, guiada por um sistema que sabe transformar desejo em necessidade, e necessidade em dependência.
Hoje, a tecnologia é o espelho onde tentamos caber. Mas esse espelho, às vezes, distorce.
A ilusão do progresso automático
Acreditamos, por um tempo, que a tecnologia nos libertaria.
Mas como alertou Walter Benjamin, o que chamamos de progresso é muitas vezes uma tempestade, uma força que nos arrasta para frente enquanto olhamos para trás, perplexos.
Nem toda inovação é emancipadora. Nem todo código é solução.
A cada ano surgem novos dispositivos, plataformas, linguagens. Mas o que de fato estamos resolvendo?
A tecnologia virou fetiche. Um totem do futuro.
E muitas vezes esquecemos de perguntar: a quem serve essa inovação?
Se ela não for acessível, inclusiva e transformadora em sua raiz, então ela é só um novo luxo e não um novo caminho.
A tecnologia como espelho social
A tecnologia reflete e amplifica quem somos.
Ela carrega o viés de quem a programa, o interesse de quem a financia, o limite de quem a acessa.
O algoritmo não é neutro, ele aprende com os dados do passado e, portanto, perpetua as exclusões do presente.
Plataformas que decidem o que vemos, quem contratamos, quem merece crédito, saúde, atenção.
Um espelho? Não. Uma lente de aumento.
Pierre Bourdieu nos ensinou que o capital cultural molda nossas chances na vida.
No mundo digital, esse capital é traduzido em fluência tecnológica, quem não sabe usar, é deixado para trás.
A promessa era de inclusão. Mas o que vemos é uma nova exclusão, mais silenciosa e mais sofisticada.
O corpo na era da máquina
O corpo virou dado.
Quantos passos você deu? Quantas calorias? Quantas horas de sono? De foco? De produção?
Byung-Chul Han escreveu que vivemos a “sociedade do desempenho”.
Onde ser é entregar. Onde sentir é performar.
Vivemos como avatares de nós mesmos, cultivando imagens que coletem likes, algoritmos que nos mantenham visíveis.
Mas quem nos vê de verdade?
Quem nos toca fora da tela?
Em que momento o corpo se perdeu entre a selfie e a planilha?
A distorção do desejo
Nunca estivemos tão expostos ao desejo e tão distantes de entender o que queremos.
A dopamina virou moeda de troca nas redes sociais. Scroll, clique, notificação. O cérebro responde. O mercado agradece.
Mas como disse Simone Weil:
“Atenção é a forma mais rara e pura de generosidade.”
Estamos perdendo a capacidade de atenção profunda, trocando o sentido pelo estímulo, a pausa pelo impulso.
De quem são os desejos que a gente tem clicado?
A tecnologia como arma e território
O mundo se tornou uma rede. Mas nem toda rede é ponte.
A tecnologia virou fronteira geopolítica, arma de guerra, estratégia de controle.
Deepfakes, manipulação de eleições, censura algorítmica.
Os dados viraram minério. E o usuário, colônia.
Achille Mbembe fala da necropolítica, o poder de decidir quem vive e quem morre.
Hoje, esse poder pode estar num botão de moderação. Num código mal calibrado.
Tecnologia sem ética é domínio. É colonização. É silêncio mascarado de eficiência.
A espiritualidade e o caráter na era phygital
E no meio disso tudo… o que ainda nos liga?
O que ainda nos dá sentido?
Espiritualidade não é religião. É profundidade. É raiz.
É a lembrança de que somos mais do que a performance. Somos presença.
Mas se o espírito ancora, é o caráter que direciona.
E o caráter, ao contrário do que muitos pensam, não nasce pronto.
Ele se constrói. Se tensiona. Se molda e hoje, se testa o tempo todo.
Nunca foi tão fácil construir uma imagem. Mas nunca foi tão difícil sustentar uma integridade.
Vivemos na era phygital: nossa existência atravessa o que é físico, digital e simbólico.
Somos vistos em telas, julgados por algoritmos, validados por métricas.
Mas caráter não se mede por curtidas. Se revela no silêncio. Na escolha invisível. No gesto que não viraliza.
É no phygital que a ética encontra seu maior desafio:
Como manter coerência quando a fronteira entre o real e o virtual se dissolve?
Como ser íntegro em um mundo onde tudo pode ser editado?
E mais: como ensinar valores em uma era onde os espelhos são filtros?
A espiritualidade, nesse contexto, é a escuta.
O caráter, o posicionamento.
E juntos, eles formam uma bússola.
Não para fugir da tecnologia, mas para navegar por ela com consciência.
Porque inteligência sem consciência é cálculo.
Mas consciência com caráter… é caminho.
Precisamos formar seres digitais que não percam sua dimensão humana.
Seres conectados que não abdiquem da profundidade.
Seres complexos, mas inteiros.
O futuro não precisa de mais gênios técnicos.
Precisa de almas éticas.
Propostas para uma digitalização humanizada
Não basta criticar. É preciso propor.
Precisamos de lideranças com ética. Não só com técnica.
Líderes que entendam que caráter é infraestrutura invisível da transformação digital.
Educação crítica para o digital. Projetos com propósito.
Ecossistemas que respeitem o tempo humano, a diversidade real, o erro como parte do processo.
Precisamos reencantar o digital. Reumanizar o que automatizamos demais.
A tecnologia pode curar. Pode libertar. Pode unir.
Mas só se guiada pela consciência.
Volto ao quintal.
Ao cheiro do feijão.
Ao silêncio que dizia mais do que qualquer tela.
Volto para lembrar: a digitalização é um caminho. Não um fim.
Se a tecnologia é o que nos move, que o caráter seja o que nos guia.
Digitalizar, sim. Mas com compaixão.
Automatizar, sim. Mas sem abdicar do afeto.
Porque no fim, não queremos só máquinas mais humanas.
Queremos humanos mais conscientes diante das máquinas.

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